Grácia Nasi. A Judia portuguesa do séc. XVI que desafiou o seu próprio destino

Introduction à l'ouvrage de Esther Mucznik

A primeira biografia de Grácia Nasi foi escrita por uma mulher, Alice Fernand-Halphen, em 1929, na Revue de Paris sob o título: Une Grande Dame Juive de la Renaissance - Gracia Mendes-Nasi.[1]

Antes, já alguns autores se haviam referido a ela no século XVII e no século XIX, nomeadamente, Meyer Keyserling na sua História dos Judeus em Portugal, Geschichte Der Juden in Portugal, publicada em 1867. Mas é sobretudo no século XX que se desenvolvem obras romanescas e estudos históricos dedicados à sua vida e personagem dos quais o grande marco é o livro de Sir Cecil Roth, Dona Gracia Nasi publicado em 1948.

Não farei aqui a lista de todas as publicações dedicadas àquela que ficou conhecida como Ha Giveret "A Senhora". Algumas constam da bibliografia apresentada no final do livro e estão, na sua quase totalidade, disponíveis para consulta. Em contrapartida, é interessante saber qual o motivo de tão abundante literatura em torno de uma mulher do século XVI sobre cuja vida existe, afinal, muito pouca documentação.Não há dúvida de que a escassez de elementos históricos pode contribuir para alimentar a imaginação, mas a verdade é que se encontram reunidas nesta personagem alguns elementos que atestam a sua singularidade e que contribuem para o símbolo em que se tornou.

Em primeiro lugar trata-se de uma mulher. No século XVI, várias mulheres ocuparam um lugar de destaque, tais como Lucrécia Bórgia ou Catarina de Médicis, Maria da Escócia ou Isabel de Inglaterra. Benvenida Abrabanel, em Ferrara, e Esther Kyra, em Istambul, foram duas mulheres judias que, entre outras, desempenharam igualmente um importante papel. Mas, no geral, as mulheres eram consideradas inferiores aos homens no plano jurídico e político. Assim, num universo temporal em que o homem é o elemento preponderante, o que "faz história", Grácia Nasi, por força das circunstâncias - morte do marido, perseguição inquisitorial, herdeira involuntária de uma fortuna colossal - e pela força do seu carácter, vai ela própria fazer história. "Esta Senhora rompeu com a maneira de ser das mulheres", escreveu no século XVI, o grande poeta de Salónica, Saadiah Lungo, o que na sua pena é certamente o maior dos elogios. Não é, pois, por acaso que a primeira biografia a ela dedicada tenha sido escrita por uma mulher e que sejam sobretudo mulheres quem vai ao longo do século XX romancear e ficcionar a sua personagem num processo de identificação e de projecção pessoal...

É, em seguida, uma cristã-nova, obrigada a esconder a sua dupla identidade, mas sem nunca dela se desembaraçar completamente, perseguida durante grande parte da sua vida, condenada à errância para se manter fiel a si mesma. Uma mulher que incarna nela própria o destino dos cristãos-novos "judaizantes", eternamente dilacerados entre dois mundos, duas culturas, duas pertenças religiosas, duas identidades. Grácia Nasi é, por outro lado, herdeira de uma fortuna colossal por morte do marido. Fortuna cobiçada por reis, príncipes e Papas que não se coíbem de exercer sobre ela as mais violentas pressões para se apoderarem da sua riqueza. Fiel às suas convicções e à sua fé inquebrantável, Grácia encontrou sempre alternativas de fuga ou de suborno que lhe permitiram resistir a elas. A sua vida percorre o mapa europeu da Península Ibérica até ao Império Otomano onde finalmente adoptou publicamente, e pela primeira vez, o judaísmo. Viúva aos 25 anos e à frente dum verdadeiro império, ela assumirá o seu papel de "mulher de negócios" simbolizando ao mais alto grau o espírito pioneiro, empreendedor e preponderante assumido na época pelos sefarditas judeus/cristãos-novos.

Finalmente, Grácia é uma mulher profundamente crente, habitada por uma paixão mística pelo judaísmo e que coloca o seu fervor religioso e uma parte significativa da sua fortuna, ao serviço dos seus irmãos de destino, os marranos, originando uma verdadeira devoção. Samuel Usque chama-lhe "O coração do seu povo" [2]. Cecil Roth escreve: "em toda a história judaica, nenhuma outra mulher foi objecto de uma tal devoção; nenhuma outra mulher o mereceu tanto. [3]" Para rabinos e eruditos a quem ela ajudou e patrocinou, Grácia tem "A piedade de Miriam, a sabedoria de Débora, a dedicação de Esther e a coragem de Judite".

O meu encontro com Grácia Nasi não foi uma revelação fulgurante. O conhecimento da sua personagem foi progressivo, em primeiro lugar, através de obras romanceadas, depois através da leitura das biografias e estudos históricos. Confesso que o meu interesse por Grácia deve muito ao símbolo que representa. Mais do que uma mulher de carne e osso, "uma carne ausente", como refere Catherine Clément [4], Grácia tornou-se o símbolo do sofrimento dos marranos, do misticismo messiânico que os habitava, da sua fé inquebrantável e ao mesmo tempo do pioneirismo económico que fez deles os precursores do capitalismo global.

Mesmo assim não teria ousado escrever sobre ela, se não fosse a insistência, a paciência e o entusiasmo do editor, sem os quais este livro nunca veria a luz do dia e a quem agradeço em primeiro lugar. Nos quinhentos anos do nascimento daquela que ficou conhecida como "A Senhora", esta é também uma forma de prestar uma homenagem à memória de uma mulher que ousou desafiar o seu próprio destino.

Este livro é inteiramente devedor das pessoas que estudaram, investigaram e imaginaram a sua vida. Trago apenas mais um olhar, desta vez de uma mulher do século XXI, também comprometida com o destino do seu povo. Esther Mucznik

[1 José Alberto Rodrigues da Silva Tavim: Portrait of the 'Senhora' with mainfold nuances: D. Gracia Nasci 'à l'oeuvre' and the fictional D.Grácia. 7th International Conference: Social and Cultural History of the Jews on the Easter Adriatic Coast, 18-22 august 20082.
[2] Consolação às Tribulações de Israel, citado por Cecil Roth, Doña Gracia Nasi, Paris, Éditions Liana Levi, para a tradução portuguesa, p.1433.
[3] Roth, Dona Grácia Nasi, Ibid., p.1434.
[4] Prefácio a Roth, ibid., p.14

«Grácia Nasi. A Judia portuguesa do séc. XVI que desafiou o seu próprio destino » de Esther MUCZNIK
© A Esfera dos Livros, 2010